Defendo que as crianças sofrem, nos dias de hoje, de transtorno de deficit de risco e de contacto com o meio exterior, desenvolvendo assim problemas na avaliação do risco, fraca consciência espacial, tornando-se excessivamente dependentes, tímidas, com falta de autoconfiança. São estas crianças que não deslocam os ombros nem arranham os joelhos, mas que desenvolvem atraso sensorial motor, obesidade e doenças crónicas típicas da idade adulta.

O risco existe tendencialmente fora de portas das nossas casas e das escolas. Isso acontece porque pais e professores vivem amedrontados e tratam as crianças como cristais preciosos que se podem partir e perder o seu valor.

Será que andam a confundir o risco com o perigo? O risco é algo que é controlável pela criança, e que é extremamente importante para sua aprendizagem. O perigo são riscos invisíveis sobre os quais a criança não tem qualquer controlo e, por isso, não tem como os evitar. Vítimas desta confusão e de incongruências sociais, as crianças não têm permissão para correrem riscos, sendo mesmo proibidas de saltar à corda, de jogar à apanhada, de jogar ao lencinho e de ousarem participar neste género de atividades lúdicas. E tudo isto sucede porque, ao fazê-lo, as crianças podem sofrer quedas ou arranhões, o que desperta um sentimento de pânico em muitos adultos e também em algumas escolas portuguesas.

Mark Tremblay (2015) defende que os pais estão obcecados com eventos extraordinariamente raros e muitas vezes inexplicáveis, ao não permitirem que os filhos corram riscos e que tenham que observar a rua somente através dos vidros dos carros e das janelas de casa, esquecendo-se que nestes contextos as crianças estão vulneráveis a outros perigos óbvios. Pelo facto das crianças não se deslocarem a pé ou em transportes escolares, muitas crianças sofrem, infelizmente, acidentes de viação; e o facto de não poderem brincar nas ruas leva à “probabilidade de estarem em contacto com predadores cibernéticos, que é 150-200 vezes maior do que a probabilidade de encontrarem um predador real do lado de fora” -, revela Tremblay, explicando ainda que os riscos vão muito além do fator psicológico. “Dentro de casa, as crianças têm menos atividade física – o que sabemos que é mau – e têm tempo excessivo em contacto com os ecrãs; com a exposição à violência, sexo e terrorismo. E isso, geralmente, acontece tudo sem supervisão!”

Defendo que as crianças sofrem, nos dias de hoje, de transtorno de deficit de risco e de contacto com o meio exterior, desenvolvendo assim problemas na avaliação do risco, fraca consciência espacial, tornando-se excessivamente dependentes, tímidas, com falta de autoconfiança. São estas crianças que não deslocam os ombros nem arranham os joelhos, mas que desenvolvem atraso sensorial motor, obesidade e doenças crónicas típicas da idade adulta.

As crianças necessitam, sim, de oportunidades diárias para assumirem riscos e desafios a fim de se desenvolverem fortes e capazes. Têm de ser incentivadas a trepar árvores, a saltar poças de água, a rebolar na terra, a pregar pregos, a serrar madeiras, a cavar, a acender fogo e a construir brinquedos, podendo levar, naturalmente, alguns cortes e arranhões para casa, mas na certeza de que desenvolveram capacidades estruturantes para a vida, tais como: (1) a autorreflexão e o conhecimento de si próprias. Isto é, quando a criança considera uma decisão arriscada, ela pratica o processo de tomada de decisão rápida, consciente e responsável. Ter tempo para refletir sobre o resultado de uma ação é incrivelmente importante e permite executar a próxima ação de maneira diferente, tendo uma perceção do risco mais estratégica e ponderada no futuro. Cada vez que passa por este processo, a criança fortalece as suas habilidades de pensamento autónomo. (2) Outra capacidade fundamental: a consciencialização sobre força e segurança, ou seja, o sistema neurológico da criança foi projetado para buscar as informações sensoriais necessárias para atingir um ótimo nível de desenvolvimento e, ao assumir riscos diários, a criança começa a desenvolver força, coordenação e consciência corporal adequadas à idade. Se as impedimos de correrem riscos elas começam a demonstrar atrasos no desenvolvimento sensorial e motor, estando mais vulneráveis à ocorrência de acidentes e a sentimentos de insegurança a longo prazo. (3) Desenvolvimento de competências sociais – O risco na grande maioria das vezes é assumido independentemente, mas também pode ser desenvolvido em contexto de grupo, com os colegas, podendo a criança compartilhar ideias com um amigo, desenvolvendo trabalho de equipa, de comunicação, de assertividade e de autoconfiança, fatores necessários na interação social. (4) Confiança e segurança em si próprio; o que significa que uma boa dose de riscos razoáveis no jogo resulta numa disposição confortável para errar e aprender com o fracasso, tornando a criança mais confiante e resiliente, que são fatores fundamentais para o desenvolvimento psicológico na infância. (5) Prevenção de outros comportamentos de risco: o aprender, desde cedo, a lidar com o risco protege as crianças de outros comportamentos de risco que estão associados à superproteção dos pais e que são cultivados sempre que estes fecham os filhos em casa, a consumirem passivamente horas de televisão, de telemóveis e de tablets, negligenciando o desenvolvimento das competências determinantes para o seu crescimento e autonomia e potenciando um super sedentarismo.

Devido ao trabalho realizado com crianças e jovens dos 3 aos 15 anos, há aproximadamente dez anos, em regime outdoor e em contacto com a natureza, tenho realizado estudos experimentais, com grupos de controlo que não desenvolvem atividades outdoor de “risco”, e com grupos experimentais que trabalham as referidas atividades ao longo de um ano letivo. Os resultados são significativos e ilustram bem todas as conclusões já aqui descritas.

Em suma, considero ser fundamental que se incentivem as nossas crianças a estabelecerem contacto com o risco, de forma regular e desde tenra idade. As crianças devem fazê-lo em espaços exteriores, através de atividades lúdicas e de dinâmicas pouco estruturadas que as obriguem a protagonizar a ação, a tomar decisões e a encontrarem soluções para alcançarem com êxito os seus objetivos. E que o consigam sem serem constantemente orientadas, monitorizadas e observadas à distância. Os pais e professores devem colaborar nesta missão, para que as nossas crianças vivam uma infância plena, que não está isenta de arranhões e de quedas, mas que seguramente irá edificar os traços de caráter dos adultos de amanhã.

Publicado em “O Jornal Económico“.


Mario Fortes

Mario Fortes

Neste momento tenho um projeto intitulado KidsTalentum onde brinco e trabalho competências sociais e emocionais com crianças, na natureza. Tenho programas de investigação com Recursos Humanos, sou investigador de Pós Doutoramento na ARDITI, e Professor Coordenador convidado na Universidade da Madeira.

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